As bibliotecas- Walter Hugo Mãe (Jornal de Letras, 15 a 28 de Maio)
As bibliotecas
são como aeroportos. São lugares de viagem. Entramos numa biblioteca como quem está a ponto de partir. E nada é pequeno
quando tem uma biblioteca. O mundo inteiro pode ser convocado à força dos seus
livros.
Todas as
coisas do mundo podem ser chamadas a comparecer à força das palavras, para
existirem diante de nós como matéria da imaginação. As bibliotecas são do
tamanho do infinito e sabem toda a maravilha.
Os livros são família
direta dos aviões, dos tapetes-voadores ou dos pássaros. Os livros são da
família das nuvens e, como elas, sabem tornar-se invisíveis enquanto pairam,
como se entrassem para dentro do próprio
ar, a ver o que existe dentro do ar que não se vê.
O leitor entra com o livro para
dentro do ar que não se vê.
Com um pequeno sopro, o leitor
muda para o outro lado do mundo ou para outro mundo, do avesso da realidade até
ao avesso do tempo. Fora de tudo, fora da biblioteca. As bibliotecas não se
importam que os leitores se sintam fora das
bibliotecas.
Os livros são toupeiras, são
minhocas, eles são troncos caídos, maduros de uma longevidade inteira, os
livros escutam e falam ininterruptamente. São estações do ano, dos anos todos,
desde o princípio do mundo e já do fim do mundo. Os livros esticam e tapam
furos na cabeça. Eles sabem chover e fazer escuro, casam filhos e coram,
choram, imaginam que mais tarde
voltam ao início, a serem como
crianças. Os livros têm crianças ao dependuro e giram como carrosséis para as
ouvir rir. Os livros têm olhos para todos os lados e bisbilhotam o cima e
baixo, o esquerda e direita de cada coisa ou coisa nenhuma. Nem pestanejam de
tanta curiosidade. Querem ver e contar. Os livros é que contam.
As bibliotecas só aparentemente são
casas sossegadas. O sossego das bibliotecas é a ingenuidade dos incautos.
Porque elas são como festas ou batalhas contínuas e soam trombetas a cada
instante e há sempre quem discuta com fervor o futuro, quem exija o futuro e
seja destemido, merecedor da nossa confiança e da nossa fé.
Adianta pouco manter os livros de
capas fechadas. Eles têm memória absoluta. Vão saber esperar até que alguém os
abra.
Até que alguém se encoraje,
esfaime, amadureça, reclame direito de seguir maior viagem. E vão oferecer tudo,
uma e outra vez, generosos e abundantes. Os livros oferecem o que são, o que
sabem, uma e outra vez, sem refilarem, sem se aborrecerem de encontrar
infinitamente pessoas novas. Os livros gostam de pessoas que nunca pegaram
neles, porque têm surpresas para elas e divertem-se a surpreender. Os livros
divertem-se.
As pessoas que se tornam leitoras
ficam logo mais espertas, até andam três centímetros mais altas, que é efeito
de um orgulho saudável de estarem a fazer a coisa certa. Ler livros é uma coisa
muito certa. As pessoas percebem isso imediatamente. E os livros não têm
vertigens. Eles gostam de pessoas baixas e gostam de pessoas que ficam mais
altas.
Depois da leitura de muitos
livros pode ficar-se com uma inteligência admirável e a cabeça acende como se
tivesse uma lâmpada dentro. É muito engraçado. Às vezes, os leitores são tão
obstinados com a leitura que nem acendem a luz. Ficam com o livro perto do
nariz a correr as linhas muito lentamente para serem capazes de ler. Os
leitores mesmo inteligentes aprendem a ler tudo. Leem claramente o humor dos
outros, a ansiedade, conseguem ler as tempestades e o silêncio, mesmo que seja
um silêncio muito baixinho. Os melhores leitores, um dia, até aprendem a
escrever. Aprendem a escrever livros. São como pessoas com palavras por fruto,
como as árvores que dão maçãs ou laranjas. Dão palavras que fazem sentido e
contam coisas às outras pessoas. Já vi gente a sair de dentro dos livros. Gente
atarefada até com mudar o mundo. Saem das palavras e vestem-se à pressa com
roupas diversas e vão porta fora a explicar descobertas importantes. Muita
gente que vive dentro dos livros tem assuntos importantes para tratar.
Precisamos de estar sempre atentos. Às vezes, compete-nos dar despacho. Sim,
compete-nos pôr mãos ao trabalho. Mas sem medo. O trabalho que temos pela
escola dos livros é normalmente um modo de ficarmos felizes.
Este texto é um abraço especial à
biblioteca da escola Frei João, de Vila do Conde, e à biblioteca do Centro
Escolar de Barqueiros, concelho de Barcelos. As pessoas que ali leem livros
saberão porquê. Não deixa também de ser um abraço a todas as demais bibliotecas
e bibliotecários, na esperança de que nada nos convença de que a ignorância ou
o fim da fantasia e do sonho são o melhor para nós e para os nossos. Ler é
esperar por melhor.
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